O caso de Jacareí
Para compreendermos a modelagem
realizada nas aparições de Jacareí é preciso explicitar os grupos e atores
envolvidos neste fenômeno e as relações estabelecidas entre eles – pois a
modelagem deste evento é realizada pelos grupos que se apropriam do fenômeno em
diferentes momentos – lembramos que as manifestações se iniciaram em 1991,
desenvolvendo sua configuração ao longo de quase dezoito anos.
Assim, procuraremos aqui
demonstrar as relações estabelecidas entre o vidente de Jacareí – Marcos Tadeu
– e os diversos atores e/ou grupos envolvidos neste fenômeno, explicitando os
fatores que colaboraram para a constituição da legitimidade das aparições, especialmente
no final dos anos noventa e início dos anos dois mil, e, por outro lado, os
fatores que levaram ao esvaziamento dos Cenáculos, a partir de meados da
primeira década deste século.
Constatamos que o sucesso e a
legitimidade das aparições estão relacionados a dois fatores: as semelhanças
existentes entre elas e as aparições reconhecidas de Nossa Senhora – segundo o
padrão estabelecido a partir do século XIX – e a sua inserção na
rede de aparições marianas
contemporâneas através da qual se estabelece a circulação de pessoas e
fenômenos e o contato entre os elos, já descritos no capítulo anterior.
O número de elementos e
características que compõem uma aparição é bastante amplo, por isso optamos por
separá-los em três partes: as características do vidente, do local em que
ocorrem os fenômenos e as mensagens transmitidas, destacando as continuidades e
as inovações em relação às aparições reconhecidas, especialmente as ocorridas
na segunda metade do século XIX e no início do século XX, classificadas por
autores como Steil (2003) de “aparições modernas”. Três aparições modernas
serão usadas para estabelecer as aproximações com as aparições da atualidade:
La Salette, Lourdes e Fátima. Optamos por estas três aparições não apenas pelo
período histórico, mas principalmente por serem aparições constantemente
mencionadas pelos participantes das manifestações marianas no Brasil –
peregrinos e videntes -, e por serem oficialmente reconhecidas e incluídas no
“modelo” de aparições estabelecido no século XIX, segundo historiadores do
catolicismo.
2.1) O vidente e a RCC
As aparições para o jovem
Marcos Tadeu tiveram início em 1991, quando ele era ainda um adolescente de
quatorze anos. Logo após as primeiras manifestações, quando o jovem havia
contado o fato para sua mãe e para alguns vizinhos, a notícia sobre ela se
espalhou rapidamente, por meio do boca-a-boca das primeiras pessoas informadas
– sua mãe, alguns amigos e vizinhos.
Durante o ano de 1994 as manifestações
continuaram de forma esporádica, sem uma periodicidade, apenas para o vidente,
sem público. Neste período foi formado um pequeno grupo de oração, que se
reunia diariamente para rezar o terço na casa do vidente. Estes primeiros
participantes eram pessoas da localidade, que começaram comentar que aparições
de Nossa Senhora estavam acontecendo em seu bairro.
A notícia se espalhou
rapidamente, chegando até o pároco de Jacareí e aos integrantes da Renovação
Carismática local, que se aproximaram do vidente, apropriando-se da
manifestação. Já a postura do pároco foi mais cuidadosa, baseando-se na cautela
aconselhada pelo Vaticano, tentando compreender o que se passava com o possível
menino vidente.
Logo nos primeiros meses um
grupo de carismáticos começou a participar do grupo de orações na casa de
Marcos, acreditando na veracidade das aparições de
Nossa Senhora e encarregando-se
de “espalhar” a notícia sobre elas, fato que se deu rapidamente, por meio do acionamento
da rede de contatos descrita no primeiro capítulo. Importa destacar que esse
grupo não foi apenas responsável pela divulgação dos eventos, mas se apropriou
do fenômeno em seus primeiros anos, modelando-o de acordo com o padrão de
aparições reconhecidas. A partir do segundo ano das manifestações, elas
passaram a ocorrer periodicamente, no sétimo dia de cada mês, data em que
ocorreu a primeira visão para Marcos. Os carismáticos organizaram um ritual
específico para este dia, que passou a ser chamado de Cenáculo, e contataram
cada vez mais gente para a participação das aparições mensais. Devido aos
contatos e a organização dos carismáticos, participantes vindos de cidades da
região, depois do Estado e de todo o país começaram a participar dos rituais do
dia sete, às seis horas da tarde.
Rapidamente este ritual não
pôde mais ser realizado na casa de Marcos, devido à falta de espaço. Foi então
que os carismáticos se encarregaram de mudar o Cenáculo para o “Monte escolhido
por Nossa Senhora”. Já estamos no ano de 1998, e os rituais ainda acontecem no
dia sete, no Monte, e recebe peregrinos do país inteiro, e até de outros
países. Este é o período áureo das aparições, em que os Cenáculos chegam a
contar com cinco mil participantes.
Nesta época, o vidente já
possuía várias informações sobre outras aparições de Nossa Senhora, já tinha
estado em contato com outros videntes de Maria no Brasil e realizado o circuito
de aparições marianas internacionais. Tudo isso devido, em grande parte, ao
apoio dos membros da RCC. O contato com outros videntes, por exemplo, ocorreu
por meio da intermediação de integrantes da Comunidade Carismática Magnificat,
de São José dos Campos, mencionada no primeiro capítulo.
A vidente com quem Marcos
possuía contato mais estreito, no final da década de noventa, era Mirna, de
Muriaé. Ela era uma das videntes “preferidas” do grupo de carismáticos de São
José dos Campos, liderado por Olga, que realizava excursões freqüentes para
Muriaé, e organizava a vinda da vidente para São José dos Campos. Por esse
motivo Marcos a conheceu, participando das aparições na cidade mineira e das
visitas de Mirna a São José dos Campos. Ou seja, pelo contato entre os
carismáticos de Jacareí – que apoiavam Marcos – e os carismáticos de São José –
liderados por Olga, e que apoiavam Mirna – os videntes se conheceram e passaram
a freqüentar cada um os Cenáculos do outro, realizando mesmo visões “coletivas”
em que Nossa Senhora se manifestava e transmitia mensagens simultaneamente para
ambos.
Além
disso, a participação de Marcos no encontro entre videntes marianos
brasileiros, realizado pelo Pe Gobbi em 1999, também ocorreu devido à
intermediação dos carismáticos. A Comunidade Carismática Magnificat foi
informada de que o sacerdote italiano viria ao Brasil, e que realizaria um
encontro entre os videntes de Nossa Senhora. Os carismáticos de Jacareí
tomaram, então, a iniciativa de contatar Pe Gobbi e de indicar a presença de
Marcos, que foi aceita pelo sacerdote.
A viagem de Marcos pelos
Santuários marianos europeus, realizada no ano de 1998, foi também patrocinada
pelos carismáticos de Jacareí, que organizaram uma “ação” para que os
freqüentadores das aparições, bem como carismáticos de outras localidades,
doassem alguma quantia em dinheiro para que Marcos pudesse viajar.
Dessa maneira, a apropriação da
aparição pelos carismáticos, durante a década de noventa, foi fundamental para
a constituição dos rituais e para a legitimação das manifestações. Através
deles as aparições foram divulgadas e se tornaram legítimas, por meio da
aproximação com as manifestações marianas reconhecidas. Os carismáticos também
foram muito importantes para a “formação” do vidente, inserindo-o no universo
das aparições marianas, informando-o sobre as características de outras
manifestações, fornecendo-lhe detalhes sobre elas.
3) As aparições de Jacareí: a
modelagem e a produção da legitimidade
No caso das aparições de Nossa
Senhora em Jacareí a continuidade simbólica é central na atribuição de legitimidade
ao fenômeno. Nelas a legitimidade é obtida a partir do reconhecimento das
semelhanças com as aparições reconhecidas, que é percebido como o padrão
instituído no final do século XIX. Ou seja, as novas aparições, como Jacareí,
para se legitimarem devem passar pelo processo de modelagem sugerido por
Claverie (2003) e adotar a forma de aparições reconhecidas.
Nesse sentido, notamos que a
semelhança com as aparições reconhecidas é constante, sendo percebida
positivamente pelos participantes, que a utilizam como exemplo da veracidade
dos fenômenos, e não como plágio, imitação. Ou seja, o fato da aparição de
Jacareí ser muito semelhante às manifestações anteriores e reconhecidas serve
como “prova” de sua veracidade para os devotos.
A continuidade simbólica é
observada em três aspectos principais, que serão analisados neste capítulo: a
personalidade do vidente, as características do local da aparição- o Santuário
-, e o conteúdo das manifestações – as mensagens proferidas.
Importa
destacar que várias destas semelhanças não estavam presentes nos primeiros
relatos sobre as aparições, tendo sido acrescentadas ao longo do tempo, já nos
primeiros anos dos eventos.
Por isso consideramos que a
legitimidade deste fenômeno é advinda, em parte, da sua modelagem ao padrão de
aparições reconhecidas. Nesse ponto notamos novamente a importância da RCC,
pois, nos primeiros anos das aparições, quando Marcos ainda era um garoto, os
membros do movimento, que possuíam contato e conhecimento sobre aparições
marianas, passaram a moldar a aparição, acrescentando-lhe elementos simbólicos
e características semelhantes aos presentes nos fenômenos reconhecidos - a
construção do Santuário, o relato das aparições e as características do vidente
foram se aproximando do padrão legítimo.
Assim, na
primeira década da aparição os carismáticos, como detentores do conhecimento
sobre as aparições marianas legítimas e do contato com outras manifestações
semelhantes, possuindo capital simbólico acumulado – obtido pela informação e
circulação pelos Santuários reconhecidos - moldam o evento de Jacareí.
Estas
características das aparições marianas nos remetem ao estudo de Pierre Bourdieu
(1975) sobre o costureiro e sua griffe, em que ele aborda a produção da
legitimidade de um produto – no caso estudado os produtos de griffe – como um
processo de “alquimia social”, em que ocorre a trans-substancialização de um
produto qualquer em um produto de griffe, por meio da assinatura do costureiro
– mesmo que ele não tenha sido o produtor direto do produto, como no caso dos
perfumes - sendo o valor simbólico atribuído a este produto – por possuir o
nome da maison - que lhe concede legitimidade.
Importa-nos
reter que a alquimia social somente obtém sucesso quando o criador possui
capital simbólico – para que possa transferi-lo ao produto através de sua
assinatura – e que a aquisição deste capital de autoridade somente acontece por
meio da relação do criador com as maisons antigas e legítimas. Segundo Bourdieu,
as rupturas de sucesso são aquelas em que os “novos” criadores são advindos das
maisons antigas, sendo que o seu capital de autoridade foi obtido pela passagem
por elas. Para Bourdieu, os pretendentes acumulam capital de autoridade levando
a sério os valores e virtudes da representação oficial, eles podem acumular
capital simbólico pelo contato e conhecimento com os elementos importantes em
um determinado campo. Esses valores devem ser obedecidos – os pretendentes
devem estar de acordo com as necessidades
estabelecidas pelo campo – para
a obtenção de sucesso. Assim, a busca da legitimidade dos pretendentes passa
pela submissão às necessidades próprias de cada campo.
A análise dos processos simbólicos
de produção de legitimidade nos ajuda a compreender melhor a centralidade da
modelagem na produção da crença na veracidade da aparição. Para que uma nova
aparição adquira legitimidade é preciso que ela se submeta as regras presentes
nessa rede, sendo que isso ocorre por meio de seus agentes
– participantes e videntes. Em Jacareí a adoção de uma série
de símbolos e valores que são característicos desse tipo de fenômeno, ou seja,
que pertencem às aparições marianas, é central para a constituição da legitimidade
da aparição.
Novamente ressaltamos o papel
central dos membros da RCC neste processo, pois nos primeiros anos da aparição
eles são os detentores do capital de autoridade necessário para inserir esta
manifestação na rede das aparições marianas, pois tem conhecimento sobre esses
fenômenos – suas características e seu conteúdo - e circulam por outras
manifestações do mesmo tipo – como demonstrado no primeiro capítulo.
Esse processo é simbólico e
social. A modelagem é parte importante da produção da autenticidade da crença
nas aparições. Os peregrinos, ao reconhecerem os elementos e símbolos das
aparições legítimas, tendem a crer nos “novos” fenômenos – como Medjugorje e
Jacareí. Para uma aparição ser percebida como verídica é fundamental que ela
acione elementos simbólicos dos eventos reconhecidos.
Neste processo de construção
simbólica o vidente assume papel central, pois ele constitui parte do padrão.
Para que a autenticidade da crença nas aparições seja constituída o vidente
deve possuir traços de personalidade que, na percepção dos peregrinos,
evidenciem o seu dom. Para eles, Maria não se comunicaria com “qualquer um”,
mas apenas com uma pessoa “especial”. A raridade do vidente deve, pois, ser
“provada” pelos seus traços de personalidade, que o tornam semelhante aos
videntes marianos reconhecidos, sendo ele também modelado.
Lembramos que a fonte da
sacralidade das manifestações encontra-se na convicção do outro, no caso, dos
peregrinos. A modelagem do fenômeno e do vidente contribui para a formação desta
convicção. A sua realização permite que os peregrinos percebam o fenômeno como
autêntico, devido ao reconhecimento dos elementos simbólicos e dos traços de
personalidade acionados. Passamos agora a análise do processo de modelagem.
A) Quem é estE Jovem?
Segundo o relato, a primeira
aparição acontece em sete de fevereiro de 1991, quando o jovem Marcos Tadeu, na
época um menino de 13 anos, está voltando para a casa e se sente “chamado” a
entrar em uma Igreja e a orar. Enquanto realiza as orações aparece-lhe uma
figura, uma jovem de cerca de dezoito anos, de uma beleza indescritível e toda
iluminada. A jovem não se identifica, apenas o convida a oração.
As manifestações, ainda
esparsas, prosseguem durante dois anos, nos quais a “Senhora” apenas dizia que
vinha do Céu, que estava a serviço de Deus, sendo somente em 19 de fevereiro de
1993, devido a grande insistência de Marcos, que pergunta quatro vezes “quem é
a Senhora”, que a jovem lhe responde: “Eu sou a mãe de Jesus”.
Duas características das
aparições já podem ser observadas nesta história: a demora na identificação da
figura e a maternidade de Maria – em sua frase de identificação ela se coloca
como Mãe, no caso mãe de Jesus54.
Analisaremos a importância da maternidade de Nossa Senhora a seguir, antes
devemos aprofundar a não identificação da aparição.
A demora em se identificar
aproxima as aparições de Jacareí das aparições modernas, em que a aparição não
se identifica de imediato. Citamos aqui os exemplos de Lourdes e de Fátima, em
que a figura que transmite as mensagens apenas se identifica no último dos
encontros com os videntes. Em Lourdes, é somente na última das dezoito
manifestações que a jovem diz ser a Imaculada Conceição. Em Fátima é também no
último dos sete encontros com os pastores que a Senhora se identifica como
Nossa Senhora do Rosário.
Inclusive a forma como ocorre a
identificação é semelhante, a aparição não diz apenas ser Maria, mas acrescenta
uma denominação específica, utilizando os seguintes termos:
“Eu
sou a Imaculada Conceição” – Lourdes “Eu sou Nossa Senhora do Rosário” – Fátima
“Sou a SENHORA DA PAZ! Sou a MÃE DE
JESUS! – Jacareí
54 A referência à maternidade,
inclusive, já estava presente nos relatos de Marcos sobre as conversas com a
“Senhora”, em que ela o chamava de “meu filho”, também se referindo ao restante
da humanidade como “meus filhos”.
Assim,
no que se refere ao relato da aparição de Jacareí, o suspense em relação à
identidade da “figura luminosa” é semelhante ao ocorrido nas aparições
modernas. Mesmo existindo várias evidências que permitem a classificação da aparição
como Nossa Senhora, o relato é construído de forma a deixar clara a demora
proposital da Virgem em revelar sua identidade.
Já na segunda aparição, em 19
de fevereiro de 1991, a Jovem – segundo eles não identificada – transmite a
seguinte mensagem: “Sim, meu filho, por que eu o amo...
Mas não quero que venha sozinho, traga aqui também muitos
dos meus filhos que Eu amo...” Ora, todos os
católicos sabem quem é a “ figura iluminada” que pode se referir a eles
como “meus filhos”! A concepção de Maria como “Mãe da humanidade” é recorrente
e comum no catolicismo, não sendo preciso ser devoto das aparições para
chamá-la de “Mãe”. Assim, todos já sabiam que a Jovem era, na verdade, Nossa
Senhora, entretanto, isso somente é explicitado cerca de dois anos depois.
Corria na região o comentário
de que Maria “estava aparecendo para um menino em Jacareí”, ele circulava entre
os católicos, especialmente os ligados ao movimento carismático. A mídia local
– pelos jornais Diário de Jacareí e Vale Paraibano – já tinha dedicado
reportagens sobre o fenômeno, referindo-se a ele como “aparições de Nossa
Senhora”. Ou seja, o público já considerava a figura como Maria, embora isso
não tivesse sido dito pelo vidente.
Esta é, pois, uma primeira
característica que demonstra a reiteração do padrão de aparições reconhecidas.
Mesmo as mensagens deixando claro que se tratava de Nossa Senhora – além de
referir-se aos homens como “meus filhos” o vidente a chama de “Jovem Senhora”,
pois a figura que ele descreve aparenta ter dezoito anos – o “mistério” em
torno da sua identidade permanece.
3.2) O Santuário
A) As aparições em local ermo
A primeira aparição de Nossa
Senhora para Marcos Tadeu ocorreu na Igreja da Imaculada Conceição, na zona
urbana da cidade de Jacareí. Durante os dois anos seguintes as aparições
ocorriam no local onde o vidente estivesse – em sua casa, na maioria dos casos.
Entretanto, a partir de seis de Março de 1993, segundo ele, Maria lhe avisa que
passaria a vir todos os dias, por volta das dezoito horas e trinta minutos. É
neste período também que “Ela” avisa que começará a aparecer no “Monte”.
O
“Monte” é uma localidade próxima à casa de Marcos, na Zona Rural de Jacareí.
Trata-se de uma montanha como qualquer outra da região, sem nenhuma
característica especial, um local ermo, deserto e de difícil acesso. Neste
local, posteriormente, teve início a construção de um Santuário dedicado a
Nossa Senhora.
Novamente aqui percebemos a
aproximação com as aparições modernas. As aparições de Lourdes, Fátima e La
Salette também ocorreram em lugares desertos, na zona rural, para crianças
pastoras que estavam cuidando do gado. Esta é uma característica do modelo de
aparições presente a partir da segunda metade do século XIX, e que difere das
manifestações da Idade Média, que aconteciam em capelas ou mosteiros, em
lugares fechados, e não em meio à natureza como as três aparições mencionadas.
Em Lourdes a Virgem aparece em uma grota, em Fátima na “Cova da Iria”, e seus
Santuários foram construídos no exato local onde, segundo o relato dos
videntes, Maria lhes aparecia – em Lourdes houve a construção da catedral sobre
a rocha da grota onde Bernadette dizia ver Nossa Senhora, sendo que no ponto
exato da aparição há uma imagem reproduzindo a Virgem; em Fátima a Catedral foi
construída ao lado da Azinheira sobre a qual Maria aparecia para os três
pastores.
Dessa forma, a transferência do
lugar das aparições para uma montanha busca uma aproximação com importantes
manifestações marianas. Por meio dela, cria-se uma história semelhante ao
modelo que obteve sucesso nas aparições européias apoiadas pela Igreja – a
localidade deserta, próxima da natureza.
A mudança no local das
manifestações ocorre no momento em que o número de peregrinações para Jacareí
aumenta devido à intervenção do movimento carismático - lideranças da RCC
entram em contato com o vidente, se apropriam da manifestação e começam a
divulgá-las por meio de suas redes. Nesse período sendo Marcos ainda um
adolescente, os grupos carismáticos dão o tom das manifestações sendo que o
novo local para as aparições é estabelecido por intermédio dos membros da RCC55.
Notamos novamente que essas semelhanças são implantadas em Jacareí ao longo do
tempo, não estando presentes em um primeiro momento.
55 Entretanto, não possuímos
muitos dados sobre este período, pois o vidente, alguns anos depois, rompeu com
os carismáticos, não nos dando indicações sobre as pessoas envolvidas. As
informações obtidas foram através de conversas com os participantes atuais, mas
estes não conheceram os carismáticos, pois ainda não participavam das
manifestações nesta época, apenas sabem um pouco do que aconteceu, como a
apropriação dos Cenáculos pela RCC e a posterior ruptura entre o vidente e o
movimento.
B) O ponto da aparição
Há um local específico no Monte
onde os peregrinos acreditam que Nossa Senhora se manifeste, é o ponto em que
Marcos diz ver Maria. Este espaço fica ao lado da capela, e a entrada dos
peregrinos é proibida. Somente as pessoas autorizadas, pertencentes ao grupo de
apoio, têm acesso a ele.
A existência de um local
específico no Santuário em que a Virgem se manifesta é também uma
característica recorrente nas aparições reconhecidas. Lembramos os Santuários
de Lourdes e de Fátima, por exemplo. Em Lourdes, segundo a crença, Nossa
Senhora apareceu para Santa Bernadette em uma grota, e este local tornou-se
ícone de devoção para os peregrinos. A imagem da Virgem de Lourdes foi colocada
no local exato da aparição, e a passagem diante dela, tocando, beijando o ponto
em que acreditam que a Virgem esteve presente é parte central da visita ao
Santuário - diante da grota foram colocados vários bancos, em que os peregrinos
passam horas orando e pedindo graças para Nossa Senhora de Lourdes.
Em Fátima, segundo os relatos,
Nossa Senhora apareceu para os pastores sobre uma azinheira. Esta árvore também
possui uma conotação importante para os peregrinos - todas as suas folhas e
galhos foram arrancados por eles, como uma relíquia. No local foi plantada uma
nova azinheira, diante da qual os peregrinos realizam suas orações. Entretanto,
embora lembre o local em que a Virgem esteve presente, não se trata de um ponto
central para os peregrinos – como a grota em Lourdes – pois a árvore original,
aquela que acreditam ter sido tocada por Nossa Senhora, não existe mais, ou
seja, o ponto exato com o qual Maria esteve em contato desapareceu, justamente
devido à devoção dos peregrinos anteriores, que quiseram levar consigo uma
folha, um galho, ou seja, uma parte do que fora tocado pela Virgem.
Em Jacareí também o espaço
“tocado por Nossa Senhora” possui uma importância especial, entretanto, esta
relevância é atribuída pelo vidente e pelos integrantes do grupo de apoio, que
restringem o acesso ao local. Os peregrinos não se importam muito com esta
restrição, não há, como em Fátima e Lourdes, manifestações de desejo ou
ressentimento por não poderem estar em contato com o espaço que acreditam ter
sido tocado por Nossa Senhora.
Há, pois, uma ambigüidade no
que se refere à importância atribuída a esse local. Para os responsáveis pelo
Cenáculo – vidente e grupo de apoio – ele é central, não devendo ser tocado por
“qualquer um”. Para os peregrinos ele é um espaço sem maior
144
relevância. Os integrantes do
grupo de apoio, por estarem mais envolvidos com o fenômeno e por possuírem um
maior conhecimento sobre aparições marianas, consideram este ponto como
sagrado, devendo ser preservado – fazem referência à grota de Lourdes e a
árvore de Fátima, lembrando a sacralidade dos locais “tocados” por Maria. 56
Já no caso dos peregrinos há
uma indiferença sobre este local, embora acreditem ser um local “tocado” por
Nossa Senhora. Isso ocorre porque, diferentemente de Lourdes e Fátima, as
aparições de Jacareí continuam acontecendo mensalmente. Dessa maneira, estão lá
no mesmo momento que a Virgem. Essas pessoas sempre mencionam a importância de
“estarem lá” no dia do Cenáculo, ou seja, no mesmo dia e no mesmo horário que
Nossa Senhora. Assim, o local tocado pela Virgem não possui a centralidade dos
Santuários da modernidade devido à simultaneidade no tempo/espaço. Trata-se do
mesmo espaço – o Santuário – e o mesmo tempo – ao meio dia dos segundos
domingos. Nos Santuários marianos citados anteriormente isso não é considerado
possível, pois as aparições deixaram de acontecer há muitos anos, sendo que o
espaço tocado por Maria é o que resta da sua presença no Santuário.
Dessa forma, a especificação de
um lugar para as manifestações da Virgem demonstra novamente o funcionamento da
operação de modelagem. O vidente e os integrantes do grupo de apoio têm
conhecimento da centralidade do ponto tocado pela Virgem nos Santuários
marianos, e, ao construírem o Santuário de Jacareí, estabelecem um ponto exato
para a manifestação, procurando atribuir valor especial a ele. A importância
deste ponto no Monte é recente – desde 2006, por iniciativa do vidente -
segundo Marcos, Maria passou a se manifestar ao lado esquerdo da capela recém
construída, e “pediu” para restringir o acesso ao local.
Assim, a proibição do contato
dos peregrinos com o local da aparição, além de demarcar o poder do grupo de
apoio, coloca em evidência este espaço e o valoriza. Ou seja, ao impedir a
permanência dos peregrinos neste local, destaca que ele não é um ponto como os
de mais do Santuário, mas sim é o espaço tocado por Nossa Senhora. Com isso
modelam simbolicamente o Santuário a partir dos padrões presentes nos grandes
Santuários de aparições marianas.
56 Além disso, esta é também uma
forma de demarcação de espaços de poder, pois apenas os iniciados, ou seja, as
pessoas que possuem um envolvimento maior com as manifestações – e não os
peregrinos que apenas participam mensalmente dos Cenáculos – podem estar em
contato com o ponto exato em que Nossa Senhora se manifesta.
Há,
porém, uma ambigüidade em relação às manifestações marianas contemporâneas no
que se refere à questão do espaço. Atualmente as aparições acontecem onde o
vidente estiver – esta é uma característica presente na aparição de Medjugorje
e que se repete em Jacareí e em outras manifestações de Nossa Senhora no
Brasil, como demonstramos no primeiro capítulo. Apesar disso, a importância da
construção de um Santuário, de um local específico para a realização dos
Cenáculos ainda se faz presente, como fica claro no caso analisado. Ou seja,
apesar da circulação de Marcos Tadeu por paróquias da região e de sua
peregrinação para outros locais de aparição, tendo visões e realizando a
peregrinação da própria Nossa Senhora, a existência de um Santuário, que segue
as características dos Santuários marianos europeus ainda é uma característica
marcante deste fenômeno.
As aparições contemporâneas
possuem Santuários, como é o caso de Medjugorje. Apesar da circulação de seus
videntes, a vila na Bósnia tornou-se um Santuário de peregrinações, como
demonstrado por Claverie (2003) em seu estudo sobre estas aparições. Outras
aparições brasileiras, como a de Piedade das Gerais, analisada por Almeida
(2004), também são marcadas pela circulação das videntes e pela formação de um
Santuário no local. Assim, embora a circulação das manifestações seja uma
característica importante das aparições contemporâneas, a construção de
Santuários nestes locais não pode ser considerada secundária – eles são
destinos de numerosas peregrinações. Esse tema foi detalhado em capítulo
anterior. Aqui devemos destacar apenas que os Santuários contemporâneos são
espacial e simbolicamente construídos de acordo com o modelo de Santuário das
aparições modernas.
C) A fonte
No “Monte”
escolhido por Nossa Senhora, segundo os devotos, existe um pequeno riacho, que
mal chega a ser um córrego, que corta o local. A água deste córrego é
considerada miraculosa, e os freqüentadores a consomem durante os Cenáculos e a
levam para suas casas, oferecendo-a para pessoas que precisam de “graças”.
Há uma série de relatos sobre o
poder milagroso deste água, considerada capaz de curar males físicos e
espirituais. Cito o exemplo de uma senhora, de São Paulo, que afirma ter
superado a depressão após a morte de seu marido devido à água de Jacareí, por
isso vai todo mês ao Cenáculo para “ver Nossa Senhora” e leva um recipiente da
água para sua casa, bebendo um pouco a cada dia e deixando uma reserva
constante para amigos,
familiares e conhecidos que eventualmente possam precisar. A água pode ser
oferecida para curar todo e qualquer mal, desde um simples resfriado até
alcoolismo e desemprego. Uma outra peregrina relata que conseguiu curar seu
genro, que estava “perdido na bebida” fazendo-o beber um pouco a cada dia da
água de Jacareí. E o rapaz, mesmo sem ter conhecimento de que bebia da “água
milagrosa”, acabou por se curar, abandonando o álcool. Estes são apenas dois
exemplos dos “milagres e curas” que a água de Jacareí é capaz de realizar.
Devido à crença em seu poder é comum observarmos vários peregrinos, no dia do
Cenáculo, com recipientes vazios, que serão utilizados para levar a água do
Santuário.
A presença
da água e a atribuição de poder milagroso a ela nos remete a uma das aparições
marianas mais conhecidas no catolicismo: Lourdes – o Santuário mariano mais
visitado no mundo. Em Lourdes, segundo a história, Maria aparece para Santa
Bernadette em uma grota e, em uma das aparições lhe mostra uma mina d’água que
diz ter poder de cura de todos os males. Desde então a água de Lourdes adquire
centralidade no Santuário, sendo que desde o século XIX os peregrinos tomam a
água e banham-se nela - no local foram instaladas torneiras e piscinas
utilizando a água da fonte.
A crença no
poder de cura da água de Lourdes é de grande importância no Santuário, sendo
que inúmeras pessoas realizam a peregrinação para se banharem nas piscinas,
acreditando que obterão a cura após a imersão nestas águas. Os peregrinos
também levam a água para suas cidades de origem, para oferecer aos amigos e
parentes e para usá-la em alguma eventualidade ou urgência. Os relatos de
milagres realizados pela água são inúmeros, reconhecidos e não reconhecidos,
estando presentes desde os primeiros anos do Santuário.
Lourdes é o
Santuário mariano com o maior número de milagres reconhecidos – sessenta e oito
– graças ao cuidado dos administradores na coleta dos relatos de curas, de
dados médicos e testemunhos associados a elas, sendo tudo fartamente
documentado e organizado em forma de dossiês. Interessa destacar que a maioria
destes milagres tem relação com a “água de Lourdes”.
A história e
os relatos presentes em Jacareí são semelhantes aos presentes em Lourdes. Além
da aparição ocorrer em um local ermo, junto da natureza, há a presença de um
riacho, ao qual é associado um poder milagroso, sendo que a forma de utilização
da água, bem como os relatos de curas também são semelhantes. Nos dois
Santuários os peregrinos bebem da água e a levam para casa, para si e para os
conhecidos, acreditando que ela lhes trará benefícios. Como em Lourdes, não é
preciso
que a pessoa doente vá ao
santuário; há relatos de milagres em que a cura ocorreu apenas por beber a água
transportada por algum peregrino, como os casos mencionados anteriormente.
O Santuário francês está muito
melhor estruturado em torna da utilização da água do que Jacareí. Há piscinas,
e garrafas reproduzindo a imagem da Virgem são vendidas em todo o Santuário,
para que os peregrinos possam transportar a “água milagrosa”. Já em Jacareí
tudo ainda é improvisado, sendo que os peregrinos bebem a água diretamente do
córrego e trazem garrafas de plástico para transportá-la. Entretanto, as
torneiras já estão colocadas – embora ainda não funcionem – e há uma piscina
para ser instalada; ou seja, a reprodução do padrão de Lourdes não está apenas
no uso da água, mas na própria estruturação física do Santuário. Em Jacareí o
uso milagroso da água é, pois, um elemento a mais na modelagem do Santuário. É
interessante notar que a menção a água não estava presente nos relatos dos
primeiros anos das aparições, sendo apenas a partir da transferência do local
dos eventos que ela passa a ser referida pelo vidente e utilizada pelos fiéis.
Dois atores se destacam como
únicos na modelagem das aparições de Jacareí: os carismáticos e o vidente. Nos
primeiros anos da aparição, quando Marcos é ainda um adolescente, grupos
carismáticos da região, principalmente de São José dos Campos, se apropriam do
fenômeno e o reorganizam. Eles são os responsáveis pela escolha do local para o
Santuário, bem como pela elaboração do relato sobre as aparições, que mais
tarde é publicada em livros e CDs, tornando-se a versão “oficial” sobre as
manifestações, hoje reproduzida pelos participantes e pelos integrantes de
Jacareí – vidente e grupo de apoio. Por volta de 2001, quando Marcos já é um
jovem adulto, ocorre a ruptura com o movimento carismático. A partir de então o
vidente passa a exercer a liderança absoluta sobre a aparição, sendo
acompanhado por um pequeno grupo de pessoas, que não possui vínculo com nenhum
movimento da Igreja. Neste momento Marcos já tem conhecimento e contato com
outras manifestações marianas no Brasil, bem como já realizou a peregrinação
para os Santuários marianos europeus. A partir de então a modelagem das
aparições passa a ser realizada pelo próprio vidente, que não admite interferências
sobre as suas “ordens”, sempre atribuídas a Nossa Senhora – como nos casos da
atribuição de poder milagroso à água e a escolha de um ponto específico para as
aparições.
No monte das aparições existe
um cruzeiro, localizado no alto de uma montanha em frente ao local em que está
sendo construída a capela. Há duas montanhas no Santuário, uma onde está a
capela e a outra, bem mais alta, onde se encontra o cruzeiro. Este local é utilizado
pelos peregrinos para o “pagamento de promessas”, ou seja, vários fiéis
realizam promessas para Nossa Senhora, para que consigam obter alguma “graça”,
como cura de doenças, emprego, entre outros. Caso a graça seja obtida eles
devem subir o morro do cruzeiro.
Esta característica novamente
aproxima o Santuário de Jacareí dos Santuários Marianos reconhecidos, em que há
um local específico para o pagamento de promessas. O exemplo de Fátima é o mais
importante e impactante, pois logo na chegada do Santuário há uma enorme
esplanada, diante da capela, que é atravessada de joelhos pelas pessoas que
acreditam ter obtido alguma graça de Nossa Senhora. Todos os dias há dezenas de
pessoas pagando suas promessas na esplanada de Fátima. Em Lourdes também há uma
montanha, que reproduz a via crucis, subida pelos pagadores de promessa – como
em Lourdes o Santuário é bastante institucionalizado, houve uma aproximação
entre o sacrifício dos peregrinos e o sacrifício de Jesus Cristo ao subir o
Monte das Oliveiras. Já em Fátima a tônica está no sacrifício humano, desde o
primeiro momento há o impacto da capela e sua esplanada repleta de pessoas se
arrastando de joelhos. Dessa maneira, se em Lourdes a ênfase do Santuário
encontra-se no poder milagroso da água, em Fátima o sacrifício é o elemento
central57.
Entretanto, devemos destacar
que a crença na necessidade de retribuição das graças obtidas por meio de
sacrifícios não é uma característica presente apenas nos Santuários Marianos;
pelo contrário, trata-se de uma prática muito recorrente no catolicismo, sendo
que na grande maioria dos Santuários existe algum local utilizado pelos
peregrinos para realizar seu sacrifício.
Lembramos o estudo realizado
por Steil (1996) sobre o Santuário do Bom Jesus da Lapa, em que a própria
realização da peregrinação é considerada pelos fiéis como o cumprimento da
promessa, ou seja, o deslocamento até o Santuário é um sacrifício, devido a
todas as dificuldades que se sucedem – a viagem de caminhão, dormir ao relento,
cozinhar ao ar livre – tudo é percebido como um grande sacrifício
57 A ênfase no sacrifício está em
parte relacionada com a crença na escatologia, na proximidade do Juízo final,
por isso ele é mais presente e evidente em Fátima, onde os elementos
escatológicos eram centrais nas mensagens de Maria, do que em Lourdes, em que a
enfase encontra-se na cura e nos milagres, sendo que a escatologia não faz
parte dos elementos simbólicos desta aparição.
realizado em troca de alguma graça
recebida do Bom Jesus58.
Toda peregrinação é estruturada em torno da promessa e do seu pagamento, sendo
a reciprocidade chave nas peregrinações do catolicismo popular.
Nos dois Santuários marianos
mencionados também ocorre a institucionalização do sacrifício. Ambos são desde
a sua fundação administrados por ordens religiosas e possuem práticas bastante
institucionalizadas, ou seja, há uma adequação à doutrina católica que procura
evitar “exageros”. Ora, apesar do sacrifício não ser um elemento estranho ao
catolicismo, a sua utilização deixou de ser enfatizada pela Igreja – embora
tenha permanecido nas práticas populares da religião. No caso dos Santuários de
Lourdes e Fátima houve a institucionalização de uma prática típica da
religiosidade popular, que acabou sendo integrada a eles – em Fátima, por
exemplo, a esplanada foi impermebializada, de forma a diminuir as dores dos
pagadores de promessa, mantendo-se a crença, mas sem enfocar as dores físicas
da promessa.
A colocação do cruzeiro no
Santuário de Jacareí, transformando a colina no local dedicado pelos peregrinos
para o pagamento de suas promessas com a Virgem, nos remete para práticas
religiosas profundamente arraigadas no catolicismo brasileiro, como as
promessas e devoção aos Santos – no caso, a Nossa Senhora.
Nesse sentido, procuramos
mostrar que embora a promessa e o seu cumprimento não sejam centrais nas
peregrinações contemporâneas; elas não estão, no entanto, ausentes nestes
fenômenos, sendo definido, inclusive, um local específico para a sua
realização, embora secundário. Além disso, a peregrinação propriamente dita não
é percebida como um sacrifício ou uma obrigação com a Virgem, característica
central das peregrinações do catolicismo popular.
3.3) O Vidente
Para que os fenômenos fossem percebidos
como legítimos era preciso que o vidente também o fosse. Dessa forma,
simultaneamente a modelagem das aparições foi sendo realizada a modelagem do
vidente. Por isso a importância das características e valores do vidente, pois
são elas que lhe atribuem raridade.
O vidente tem que ser percebido
como dotado de valor e raridade para que possa transferir raridade e valor para
seu produto – as suas visões. Desde o início das
58 A importância da peregrinação
no catolicismo popular e a sua percepção como uma forma de retribuição ao santo
foi analisada no capitulo anterior. Neste item importa destacar a existência do
cruzeiro no Santuário de Jacareí, e o seu uso para o pagamento de promessas dos
peregrinos, de forma semelhante às praticas da religiosidade popular e também
dos Santuários marianos europeus.
manifestações alguns valores do
vidente são destacados, como a humildade e a inocência – estes são dois valores
importantes nos videntes de Nossa Senhora – sendo considerados atributos que
demonstram que a pessoa foi um “escolhida” de Maria, ou seja, é um vidente
legítimo.
Como sugere Bourdieu, para que
um criador atribua raridade a um produto ele próprio tem de ser percebido como
raro. É a raridade do criador que faz a raridade do produto. Ou seja, “produzindo
a raridade do produtor que o campo da produção simbólica produz a
raridade do produto” (1975:21). Assim, a excepcionalidade do vidente
também deve ser produzida para que a aparição seja considerada verídica.
A figura central das aparições,
além de Nossa Senhora, é o vidente – pessoa considerada “escolhida” pela Virgem
para receber as suas mensagens. Como observado em relação ao Santuário, há
também características do vidente que são importantes para a atribuição de
legitimidade à aparição e ao próprio vidente. Analisando as falas dos
participantes sobre Marcos constatamos que as características que eles
ressaltam estão relacionadas à sua personalidade – de pessoa “humilde” e
“inocente” – e a sua história de vida – marcada por sacrifícios e provações, e
sem pecados. Assim, para o vidente ser considerado legítimo – e não um
farsante, mentiroso, charlatão, louco – ele deve convencer o público da
veracidade do evento, sendo que a história de sua vida e suas características
pessoais constituem parte importante desse processo de legitimação.
Estes elementos – a história do
vidente e sua personalidade - também são levados em conta no processo de
reconhecimento da Igreja. A história de vida é significativa antes, durante e
após os eventos. Antes, porque ele deve demonstrar possuir os valores que
levaram a Virgem a “escolher” aquele indivíduo, sendo que a “humildade” e a
“inocência” do vidente são importantes. Durante porque o vidente deve provar
sua sanidade mental – são visões, e não alucinações – e seu não charlatanismo –
pela ausência de interesses financeiros. Após, pelo chamado “testemunho de
vida”, ou seja, o vidente deve ter uma postura considerada correta pela Igreja,
demonstrando a presença do contato divino em sua pessoa por meio de uma conduta
“exemplar”.
Nesse sentido, a aproximação
com as aparições modernas é novamente notada, pois as características
mencionadas são observadas nos videntes das aparições reconhecidas. Os
atributos destacados de Marcos são semelhantes aos destacados nos videntes do
final do século XIX e início do século XX. Devemos, pois, analisar cada uma
destas características importantes para a excepcionalidade do vidente frente
aos devotos e à instituição.
A) A Inocência e a Humildade
A “humildade” e a “inocência”
de Marcos Tadeu são duas características constantemente reiteradas pelos
participantes. A humildade é demonstrada, para eles, pela sua situação
econômica – sendo originário das camadas populares – e pelo fato de não possuir
um grau elevado de educação formal, especialmente no momento da primeira
aparição de Nossa Senhora.
A “inocência” também está
relacionada a pouca educação formal do vidente durante as primeiras manifestações,
bem como a sua juventude neste período – ele tinha treze anos em 1991, quando
ocorreram as primeiras visões – sendo ambas consideradas como “provas” da sua
inocência, ou seja, de sua incapacidade em manipular ou inventar as aparições.
Estas duas características – a
inocência e a humildade – são consideradas importantes para a “escolha” feita
por Nossa Senhora. Na percepção dos devotos, Marcos era um jovem comum, pobre,
humilde, inocente, e justamente por ser tão comum, por possuir as mesmas características
que vários outros adolescentes da sua idade – sem possuir nada de “especial”,
nada que o colocasse em destaque – ele é escolhido por Maria para ser o
intermediário de suas mensagens.
Ou seja, a excepcionalidade do
vidente se funda justamente em não ter nada de especial, em ser mais um jovem
pobre e sem instrução. No entanto, é um jovem pobre e humilde que aceita a
missão de divulgar as mensagens transmitidas pela Virgem, e todas as provações,
sacrifícios e perseguições conseqüentes desta tarefa. Assim, apesar das
características que o enquadram como “mais um”, sem nada de especial, a
perseverança e fortaleza do vidente em cumprir a sua missão são também
destacadas.
Os traços de personalidade de
Marcos – humildade e inocência, mas acompanhadas da fortaleza e perseverança,
fundamentais para que divulgue as mensagens de Maria - nos remetem à outra
vidente mariana, já canonizada: Santa Bernadette, a vidente de Lourdes. Segundo
Ruth Harris, a simplicidade e a pobreza de Bernadette são essenciais para o seu
reconhecimento pelo povo. Em suas palavras “sa simplicité, son
regarde direct, son patois faisaient partie integrante du message de notre dame
de Lourdes. En la choisissant, la Vierge avait distingué les pauvres et les
ignorants.” (2001:195).
152
Entretanto,
apesar da ignorância extrema de Bernadette – considerada prova de sua inocência
–, ela era muito forte, tendo passado por várias provações – como xingamentos e
desprezo por parte das autoridades locais e dos padres e bispos – mas
persistindo em seu relato. Assim, como Bernadette, as virtudes destacadas de
Marcos Tadeu estão relacionas a sua humildade e inocência. No entanto, também
como a vidente de Lourdes, apesar de humilde, ele é forte, sendo capaz de
superar as várias provações para persistir em sua fé.
Pobreza, simplicidade,
juventude, inocência – todas estas características estão associadas aos
videntes desde as aparições do final do século XIX. Em La Salette, Pontmain,
Lourdes, Fátima, Garabandal e Medjugorje os videntes eram crianças ou
adolescentes pobres, quase sempre pastores, que estavam em localidades isoladas
pastoreando o gado. Os carismáticos presentes nos primeiros tempos das
manifestações sabiam disso, bem como Marcos e os participantes do grupo de apoio
o sabem atualmente. Assim, quando enfatizam estas características de Marcos
Tadeu em seus relatos, destacam valores considerados importantes nos videntes
reconhecidos, e que constituem a sua raridade. Ao destacarem os mesmos valores
no jovem de Jacareí, estão demonstrando a sua raridade, que justifica o fato
dele ter sido “escolhido” por Maria.
Além disso, estes valores dos
videntes são muito semelhantes aos apresentados por Nossa Senhora durante a
anunciação – momento em que ela é “escolhida” por Deus para gerar o seu filho.
Por um lado, ela é retratada como muito jovem neste período, sendo de origem
humilde. Por outro lado, esse é o momento em que ela diz sim ao Senhor, aceita
o plano divino com todas as suas dores e sofrimentos.
De forma semelhante à Maria, os
videntes são jovens e humildes no momento em que dizem sim à aparição, em que
aceitam a missão de divulgar a mensagem da Virgem e se empenham em cumpri-la –
como o sim de Nossa Senhora, o sim de Marcos também não representa a
passividade, mas a atividade, a perseverança e a fortaleza em cumprir os
desejos de Nossa Senhora mesmo diante das dificuldades enfrentadas. Além disso,
assim como Maria, a jovem humilde escolhida pelo senhor, Marcos é apenas mais
um, ele não se destaca, não aparenta ter nada de especial.
Marcos possui, pois,
características pessoais semelhantes aos demais “mensageiros de Deus”, desde a
mais iminente delas – Nossa Senhora – até os videntes marianos desde o século
XIX. Isso permite que os peregrinos reconheçam nele traços de santidade,
comprovando a sua raridade, fundamental para a produção da verdade da crença
nas suas visões.
B) A vida de provações: a
importância da perseverança
As provações pelas quais Marcos
Tadeu teve de passar desde a sua infância são sempre destacadas nos depoimentos
sobre a sua vida. O seguinte relato, presente no livro “Maria nas aparições de
Jacareí” ilustra bastante bem a centralidade dada às dificuldades do vidente ao
longo de sua vida. Este relato está no item “Maria escolhe um jovem”, dedicado
à descrição de Marcos:
“Quando
pequeno tinha um problema de sopro no coração. O pai, desde os quatro anos de
Marcos, começou a beber, causando grande sofrimento para a família. Seu pai era
um homem violento, e quando bebia chegava a bater nele e em sua mãe. Quando
tinha de nove a dez anos o pai o abandonou, com a o irmão, sozinhos. Para que
não passassem necessidade sua mãe trabalhou arduamente. Mesmo assim, nunca foi
revoltado, nem teve dificuldades escolares, sempre tirando boas notas. Em 1986
teve sarampo e quase morreu, ficando quatro dias inconsciente”. (2000:11)
Podemos notar, nesta primeira
parte da descrição da infância de Marcos, que apenas os sofrimentos e
dificuldades passados pelo vidente e por sua família são relatados. O tom de
provação persiste durante todo o item, valorizando mesmo dores aparentemente
simples - como um pequeno problema no joelho. No livro mencionado, há dois
momentos que relatam as provações: o primeiro deles menciona as provações
passadas pelo jovem na infância, e o segundo momento os sacrifícios dedicados a
Jesus, iniciados após as visões. Assim, qualquer pequeno transtorno vivenciado
pelo vidente é relatado de forma a valorizá-lo como uma provação ou um
sacrifício.
Além dos sofrimentos físicos,
os relatos dos participantes também destacam as “perseguições”. Segundo eles,
Marcos passou por “perseguições” de diferentes origens: pela diocese de São
José dos Campos - que não considera a aparição verídica e submeteu o vidente a
exames e entrevistas para constatar a sua sanidade mental -; por parte da
população local “que falava mal e rejeitava as aparições. Como outrora em
Belém, em que o povo da cidade não quis aceitar o Salvador e a Virgem
Santíssima.”
(2000:35) – os moradores de Jacareí jamais aceitaram as
manifestações, considerando Marcos como um farsante e interesseiro, em
referência aos supostos benefícios financeiros obtidos por ele com as aparições
-; por parte da mídia, que no auge dos
154
Cenáculos
publicou matérias que indicavam o charlatanismo de Marcos e supostos benefícios
financeiros retirados dos rituais -; por parte de grupos evangélicos, que
empreenderam “ataques” ao vidente, por agressões verbais e ameaças físicas.
O relato da
vida de Marcos destaca as provações, sacrifícios e perseguições passados por
ele desde a sua infância até os dias de hoje. Este relato, elaborado pelos
carismáticos envolvidos com as manifestações em seus primeiros anos, foca as
dificuldades da vida do vidente, repetindo o padrão de relatos de vida de
videntes.
A vida da
vidente Bernadette, de Lourdes, é um relato de referência. Ela teve uma
infância muito pobre e conturbada, marcada pela fome, e, depois, com as
aparições foi humilhada pelos habitantes locais e por alguns representantes do
clero, até o momento do reconhecimento, após o qual se recolhe em um convento.
Porém, mesmo com o fim das “perseguições” e da pobreza extrema, sua saúde
continuou muito frágil, levando-a ao falecimento precoce. A vida dos videntes
de Fátima, três pastores, é também relatada como pobre e humilde, sendo repleta
de “provações”, tanto que dois deles – Jacinta e Francisco – morrem ainda
durante a infância.
Assim, a
ênfase nos sofrimentos e na rejeição assemelha a história de vida de Marcos a
de outros videntes marianos59.
– inclusive pelo destaque a seus problemas de saúde, nunca muito graves, mas
intensamente sublinhados, aproximando-os dos males físicos sofridos por outros
mensageiros – de forma a legitimar sua veracidade. A ênfase nas provações e
sacrifícios torna patente a proximidade entre a vida dos videntes, inclusive de
Marcos Tadeu, e a vida de Jesus, pois ambas são marcadas por provações a serem
superadas, sacrifícios corporais dedicados a Deus – Jesus passou pela dolorosa
via crucis; Marcos sofreu dores físicas, doenças, internações, todas elas
interpretadas como sacrifícios pedidos por Deus e realizados de bom grado pelo
vidente – e perseguições por parte de diversos setores da população – foi o
povo que condenou Jesus a crucificação, além de outras perseguições passadas
por ele e os apóstolos durante sua vida, Marcos também destaca as várias
perseguições sofridas desde o inicio das aparições.
A ênfase nos sofrimentos
físicos de Marcos, em suas doenças, é uma maneira de comprovar a sua
“santidade”, por meio da aproximação dos sofrimentos de Jesus e de outros
videntes de Nossa Senhora. Assim, o relato da vida de Marcos Tadeu é
59
Apenas alguns episódios de felicidade e satisfação são narrados, como a sua
visita aos Santuários Marianos europeus – Fátima, Lourdes e Medjugorje.
Entretanto, mesmo os momentos felizes citados servem para atribuir legitimidade
ao vidente, pois se referem à sua peregrinação aos Santuários Marianos de
aparição mais visitados na contemporaneidade.
construído de forma a atribuir
legitimidade e raridade ao vidente pela aproximação entre a sua vida e a vida
de Cristo e de outros santos.
C) O testemunho de vida
A vida
seguida pelo vidente após as aparições também é utilizada como evidência da
veracidade das aparições. Aliás, o que mais se poderia esperar de uma pessoa
que viu e conversou com Nossa Senhora? Que siga uma vida “santa”, “sem
pecados”, ou seja, de acordo com a conduta considerada correta pela Instituição
Católica, ou instituída pela Virgem. A conduta dos videntes é importante e
possui lugar central na análise sobre a veracidade das aparições por parte da
Igreja. Além disso, ela serve como fonte de legitimação para estes fenômenos60.
A análise da
postura do vidente foi instituída pela Igreja ainda na Idade Média, momento em
que ela, segundo Barnay, busca retirar o foco das visões e dos transes e centrar-se
nos videntes, nas pessoas que tiveram contato com a Virgem Maria. Eles passam a
ser chamados “exempla”, ou seja, os visionários deviam ser pessoas exemplares
por meio da imitação da Virgem Maria, assim, eles próprios se tornariam modelos
para a cristandade. A Igreja busca exercer o controle sobre as visões por meio
do controle dos videntes, transformando-os em exemplos de vida. Essa forma de
agir da Igreja Católica em relação aos videntes não sofreu grandes alterações
nas aparições modernas e nas aparições contemporâneas, sendo que ainda hoje um
dos principais critérios determinados pelo Vaticano para o reconhecimento de
uma aparição é a análise do comportamento do vidente. Quanto mais alinhado com
a doutrina católica, maiores as possibilidades de reconhecimento, especialmente
quando eles se tornam exemplos para os demais cristãos, optando pela vida
religiosa, como fizeram as videntes Lucia – vidente de Fátima – e Bernadette –
vidente de Lourdes.
No caso de
Jacareí, mesmo diante do combate realizado pela diocese às aparições, o vidente
busca ter uma vida “exemplar”, afastada do mundo de pecados. Nesse sentido, ele
institui regras mais rígidas do que as presentes na Igreja após o Concilio
Vaticano II61.
O vidente se veste com uma batina marrom, como a dos franciscanos, não
freqüenta festas, bares e restaurantes, não namora, não acumula
60 No
capítulo sobre o papel da Igreja nas aparições demonstramos como o Pe Laurentin
constrói a legitimidade das aparições de Pontmain a partir do testemunho de
vida exemplar de seus videntes.
61 Isso
tem relação com as críticas ao clero e a Igreja, comuns nas crenças
escatológicas e nas concepção do mundo como local do pecado, como analisaremos
no capitulo seguinte.
riquezas – fez voto de celibato
e de pobreza. Ou seja, segue uma doutrina muito rígida que o afasta do “mundo”
considerado pecaminoso.
Entretanto, se os valores do
vidente bastavam no início das manifestações, quando ele ainda era uma criança,
com o passar do tempo apenas o seu caráter extraordinário não era suficiente,
ele devia também ser inserido no campo como agente, adquirindo conhecimento e
contato com outras manifestações, de forma a acumular o capital simbólico
necessário para manter a sua legitimidade. Marcos, por exemplo, realizou
inclusive a peregrinação para os Santuários marianos europeus – Fátima, Lourdes
e Medjugorje. O vidente acumula capital simbólico pelo contato e conhecimento
sobre as aparições reconhecidas. Além disso, Marcos, com o passar do tempo,
consegue se mostrar detentor deste capital de autoridade, sendo que, na segunda
década das aparições ele é o detentor exclusivo da palavra durante os
Cenáculos, realizando orações, pregações e interpretações das mensagens de
Nossa Senhora, sendo capaz de realizar citações sobre outras manifestações e
conexões entre as mensagens da Virgem, demonstrando amplo conhecimento sobre
elas. Ou seja, neste período ele passa de mero receptáculo das mensagens para
intérprete exclusivo delas, analisando-as e estabelecendo conexões entre elas e
mensagens da Virgem em outros locais.
Demonstraremos a seguir que as
atitudes tomadas por Marcos neste período o afastam do padrão estabelecido para
as aparições e para seus videntes, causando a ruptura com importantes membros
da rede de manifestações marianas.
4) A Retração das Aparições
Neste item analisaremos a
segunda década das aparições, a partir de 2002, momento em que os Cenáculos
entram em declínio, diminuindo significativamente o número de participantes. Consideramos
que este esvaziamento ocorreu devido a dois fatores: o isolamento do vidente e
o seu afastamento do modelo de aparições reconhecidas. Desde o início das
manifestações ele não foi aceito pelo bispo da diocese, sendo posteriormente
combatido por ele e, em seguida pelos sacerdotes locais. Entretanto, o seu
isolamento ocorreu principalmente em relação à comunidade católica de Jacareí e
das cidades próximas e a figuras importantes da RCC no Vale do Paraíba – que,
na primeira década, constituíram a sua base de apoio.
Quando encerramos nosso
trabalho de campo o vidente encontrava-se isolado, apoiado apenas por um
pequeno grupo de participantes fixos, responsável pela
organização dos Cenáculos, que
a cada mês estava mais esvaziado. Neste momento quase não havia “novos”
peregrinos, a grande maioria era de participantes fixos, vindos de outras
localidades, mas que já conheciam a aparição e a freqüentavam com certa
regularidade. Ou seja, a aparição estava estagnada devido à rejeição do vidente
na comunidade religiosa local – clero e católicos da região –, e a sua ruptura
com o movimento carismático. Analisamos esta teia de relações, que a princípio
contribuiu para a legitimidade das manifestações, mas, que também se mostrou
central para a estagnação posterior dos rituais.
A perda de apoio está
relacionada à perda da autenticidade de suas visões, elas não são mais
percebidas como verídicas pelos carismáticos e pela comunidade local; ou seja,
eles não têm mais convicção na sacralidade dos fenômenos. Isso ocorre porque
Marcos rompe com o padrão das aparições reconhecidas - no que se refere à
simbologia e as características de sua personalidade. Ele insere novos
elementos e realiza ações que, na percepção dos peregrinos, não condizem com
uma aparição verídica e um vidente autêntico.
4.1) A ruptura com os carismáticos
A ruptura entre o vidente e os
carismáticos da região ocorre no final do ano de 2001, exatamente uma década
após o início dos fenômenos. Vários fatores contribuíram para isso. Marcos já
possuía contatos e informações sobre aparições marianas, e começou a questionar
o “domínio” dos carismáticos sobre os Cenáculos, argumentando que ele era o
vidente, ele era “o escolhido de Nossa Senhora” e, portanto, ele deveria
decidir o encaminhamento do ritual.
Paralelamente, os carismáticos
o acusavam de “querer aparecer mais do que Nossa Senhora”. Esta
frase foi proferida por duas carismáticas, de grupos distintos e em ocasiões
diferentes, buscando demonstrar a arrogância do vidente, ou nos termos das
informantes, a sua “vontade de aparecer”.
Assim, Marcos, ao tentar tomar
a frente dos Cenáculos, inicia uma disputa com os carismáticos, que não
concordam com a sua liderança. Ou seja, enquanto ele era uma criança e aceitava
submissamente as ações e intervenções realizadas pelos carismáticos, a aparição
foi intensamente apoiada, divulgada e promovida pelos membros do movimento. No
entanto, quando o vidente começa a questionar estas ações, e especialmente ao
buscar ser o centro, o foco dos rituais, passou a ser percebido como arrogante
e perdeu seu apoio.
O vidente
usa a sua exclusividade como moeda de valorização própria, pois
“ele sabia o que a Virgem queria, os outros não”. Como
“escolhido de Maria”, afirma que ela lhe atribui tarefas, que
somente podem ser realizadas por ele. A mais importante delas – e também a mais
polêmica – é a sua exclusividade na interpretação das mensagens de Nossa
Senhora. Essa atitude vinha em resposta à organização do livro “As aparições
de Nossa Senhora em Jacareí” pelos carismáticos, no qual a sua participação
foi mínima – os membros da RCC contaram a história e deram sua interpretação
sobre os fenômenos.
O vidente, ao se proclamar como
único intérprete legítimo das mensagens da Virgem em Jacareí – passa a
organizar mensalmente um CD, com todas as mensagens transmitidas por Maria e
com a sua interpretação delas – retira o poder da RCC em relação às “suas”
aparições. Além disso, durante os Cenáculos, ele passa a ser o único a ter
acesso à palavra. Ele conduz as orações, tem a visão e, por fim, interpreta a
mensagem transmitida por Nossa Senhora.
Diante destas atitudes os
carismáticos da região rompem definitivamente com Marcos, parando de freqüentar
os Cenáculos e depondo contra ele em seus encontros. Importa destacar que o
embate entre os carismáticos e o vidente acontece no momento em que os
representantes locais da Igreja intensificam o combate às aparições, fato que
também dificulta o apoio da RCC que, por ser um movimento católico, precisa, em
certa medida, do aval da Igreja. Ou seja, o incentivo às aparições de Jacareí
começava a trazer problemas para os carismáticos junto aos representantes do
clero local, devido aos “exageros” do vidente.
4.2) A ruptura com a Igreja
A aceitação ou a rejeição das
aparições pela ortodoxia católica é uma questão que perpassa a história desse
tipo de evento. O caminho percorrido para o reconhecimento de uma manifestação
de Nossa Senhora pela ortodoxia é bastante longo, entre uma pessoa dizer ter
visto e escutado Maria e a aceitação deste fato pela Igreja há um grande
caminho a ser percorrido, que, na maioria dos casos, culmina com a sua rejeição
ou mesmo com a interdição pelos representantes oficiais do catolicismo.
O número de aparições de Nossa
Senhora não aceitos pela Igreja é imensamente maior do que os reconhecidos
oficialmente, e mesmo que os apenas “tolerados”. Jacareí é mais um exemplo de
rejeição. Atualmente a aparição é completamente rejeitada pelos representantes
locais da Igreja Católica, mais
especificamente
pelo bispo de São José dos Campos, responsável pela paróquia em que ocorre a
manifestação.
Várias
etapas se sucederam até a rejeição: a principio o bispo apenas “não
recomendava” a participação dos padres, mas, devido à intensificação da
polêmica em torno das atitudes do vidente, o bispo acabou proibindo a presença
de sacerdotes no Cenáculo. O pároco de Jacareí acatou sua recomendação e foi
ainda mais agressivo, proibindo a participação dos paroquianos, sendo que aqueles
que desobedecessem à sua determinação não receberiam a comunhão durante as
missas.
Esse é o
momento de auge dos debates, que não arrefeceram até o final de meu trabalho de
campo, em 2007. É preciso destacar que a proibição estabelecida pelo bispo surtiu
efeito sobre o Cenáculo, contribuindo muito para a diminuição do número de
participantes nos rituais. Assim, embora não tenha conseguido extinguir o
ritual, diminuiu significativamente o número de participantes. Especialmente na
diocese de São José dos Campos, a qual pertence Jacareí, a retaliação a essa
aparição funcionou, pois atualmente os participantes dos Cenáculos não são
provenientes da cidade ou da diocese, mas sim de outras localidades: são os
peregrinos analisados no primeiro capítulo.
Segundo a postura determinada
pelo Vaticano, uma aparição, para ser rejeitada, deve estar em contradição com
elementos da teologia católica. Assim, a postura dos sacerdotes locais está
fundamentada nas contradições entre o que é estabelecido pela ortodoxia católica
na análise deste tipo de manifestação e a aparição de Jacareí. No capítulo
anterior demonstramos que os critérios estabelecidos pelo Vaticano são
utilizados de acordo com o interesse dos atores e grupos envolvidos nos
eventos. A inserção de “novos” elementos e a postura do vidente contribuem para
que a hierarquia percebesse desvios nesta manifestação que a caracterizavam
como “falsa” e, portanto, ilegítima.
4.3) Os “exageros” do vidente e o
combate do clero
As visões de
Marcos Tadeu, com o passar do tempo, foram apresentando elementos considerados
inconsistentes, sem conexão com a doutrina católica ou com as aparições
reconhecidas de Nossa Senhora. Esses elementos surgiram por volta de 1998, no
auge das manifestações. Neste período, Marcos, já um garoto de 20 anos, diz
receber também a visita de Jesus e de São José, e até mesmo do Arcanjo Gabriel.
Todos transmitem mensagens e “confirmam” as falas de Nossa Senhora. Embora a
figura
central das
aparições ainda seja Maria, outros santos também começam a aparecer e a falar
com Marcos, o que desestrutura o padrão consolidado das aparições: a Virgem não
aparece mais sozinha durante os Cenáculos, mas acompanhada de Jesus e de São
José.
A inserção
destes elementos faz crescer a desconfiança da comunidade e do clero local –
que já não via com bons olhos os encontros no Monte. A Igreja inicia, então, um
combate contra as manifestações. O principal argumento utilizado por ela é a
“inconsistência” das visões de Marcos Tadeu. A diocese e algumas paróquias da
região se encarregaram de montar cursos e palestras sobre Nossa Senhora e sobre
suas aparições, para “esclarecer” os paroquianos sobre esse tipo de fenômeno.
Exemplo disso foi um curso realizado na paróquia do Espírito Santo, em São José
dos Campos, na quaresma de 1999. Durante três noites foram realizadas palestras
sobre Nossa Senhora, dedicadas aos dogmas marianos – enfatizando o que era
aceito ou não pela Igreja – e a última delas foi referente às aparições de Nossa
Senhora. Nela o palestrante mencionou a cautela e a prudência recomendadas pelo
Vaticano, bem como os critérios de avaliação, enfatizando a importância da
adequação à doutrina católica e terminou demonstrando as características comuns
entre os fenômenos reconhecidos.
Em apenas um
momento as aparições de Jacareí foram mencionadas, justamente para lembrar a
importância da prudência, recomendada para cada um dos participantes, e da
adequação à doutrina. Para a grande maioria dos participantes do curso, que já
conhecia as manifestações de Jacareí, ficou evidente no momento em que o
palestrante começou a demonstrar as semelhanças entre as aparições de Nossa
Senhora, as diferenças em relação às visões de Marcos.
Importa destacar que esta
paróquia é um importante centro de referência para os carismáticos locais,
sendo que o Pároco é um destacado membro da RCC na cidade e na região, sendo
suas missas repletas de carismáticos de toda a cidade e mesmo de cidades
vizinhas. Assim, o público das palestras foi constituído, em grande parte, por
membros e lideranças da RCC na região. Ao final das palestras ficou clara a
intenção dos organizadores – o bispo e o pároco – em alertar os paroquianos a
respeito das aparições de Nossa Senhora, especialmente sobre as manifestações
de Jacareí, que atraíam multidões devido, em grande parte, ao empenho de
membros da RCC. O pároco de Jacareí teve uma postura mais explicita contra as
aparições. Enquanto os paroquianos de São José dos Campos estavam sendo
formados para o “discernimento”, ou seja, para que pudessem avaliar as
aparições – embora com uma forte tendência a renegá-las – os fiéis de Jacareí
foram proibidos de freqüentá-las, sendo ameaçados inclusive com a
excomunhão. O pároco de Jacareí
foi enfático quanto às “aberrações” das visões de Marcos, especialmente no que
se refere às aparições de Santos – principalmente São José – fato que não está
presente nas aparições reconhecidas.
O pároco de Jacareí usava
argumentos que demonstravam a incompatibilidade entre as aparições de Marcos, a
doutrina católica e as aparições reconhecidas, especialmente no que se refere
aos “novos” elementos, como as visões de Santos e Anjos. Em suas palavras “isso
nunca aconteceu antes, Maria aparecer tantas vezes, e ainda mais junto
com Jesus e São José! Em Lourdes não foi assim, nem em Fátima. Tudo naquela
aparição (a de Jacareí) demonstra a sua falsidade”.
Dessa forma, os elementos
heterodoxos com relação às aparições reconhecidas eram usados para deslegitimar
a aparição de Jacareí. Se em um primeiro momento houve a modelagem do fenômeno
de acordo com o padrão estabelecido no século XIX para lhe atribuir
legitimidade, nesta segunda década são justamente os elementos que demonstram o
afastamento com relação ao padrão que são enfatizados pelos sacerdotes para
demonstrar a sua falsidade. Isso foi realizado em São José dos Campos, por meio
das palestras, e em Jacareí, pelas pregações do pároco62.
A inserção de novos elementos é
percebida como heresia. Marcos quebra as regras do jogo, acrescentando
elementos que não estavam presentes nas aparições reconhecidas. A sua ruptura
com as aparições estabelecidas foi além do que era aceitável, demonstrando uma
autonomia que impossibilitava a aceitação de suas visões como legítimas. Sua
postura também contribui para o declínio das manifestações. As atitudes e falas
de Marcos o afastaram do ideal de humildade e inocência constituintes dos
videntes marianos, caracterizando-o, pelo contrário, como arrogante, adjetivo
percebido na fala dos carismáticos e dos católicos locais em referência a ele.
4.4) O Vidente e a Comunidade: da
inconsistência ao isolamento
No momento em que a diocese e a
paróquia começam a “esclarecer” os participantes locais, realizando pregações e
palestras contra as aparições de Jacareí, demonstrando a sua incoerência com a
doutrina católica, o discurso da comunidade local, especialmente dos católicos,
também segue na mesma linha. Ou seja, os
62 Segundo o vidente, houve um
combate generalizado a suas visões, realizado por vários padres da região e
pelo bispo, que falavam contra elas em suas pregações. Não pudemos observar
este fato em outras paróquias da região, apenas em Jacareí e em São José dos
Campos, mas esta era uma fala recorrente de Marcos durante os Cenáculos,
acusando “os padres” de pregarem “contra Nossa Senhora”. De qualquer forma, o
combate a elas, por meio da desvinculação dos fenômenos reconhecidos foi a
estratégia usada pelo clero local.
moradores embasam sua descrença
na incoerência com a doutrina católica, especialmente na diferença em relação
às aparições reconhecidas de Nossa Senhora. O depoimento de Beth, católica
praticante da paróquia de Jacareí ilustra bem este ponto:
“Nós
começamos a perceber, a ver que aquilo que acontecia lá (no monte) nunca tinha
acontecido antes. Não era nem parecido com as outras aparições de Nossa
Senhora. Essa história de Jesus, de São José aparecerem, de falarem com o
vidente nunca aconteceu! Então a gente foi percebendo que não era verdade, que
nas aparições de Nossa Senhora não era assim.”
A inserção de elementos que
fugiam do padrão das aparições reconhecidas causava incômodo nos paroquianos,
levando-os a crer na falsidade das visões de Marcos Tadeu. Ou seja, a “novidade”,
o fato disso “nunca ter acontecido antes” deslegitimava as aparições,
pois as afastava do padrão recorrente.
Dessa forma, o vidente ganha
autonomia, ele não é mais apenas o “mensageiro” da Virgem, mas também o
intérprete das suas mensagens e o condutor do culto. Ele deixa de ser um
instrumento vazio, por meio do qual Maria se manifesta, tornando-se um
indivíduo.
Os novos papéis assumidos pelo
vidente o afastam do padrão, em que os videntes são percebidos apenas como
instrumentos de Maria. Lembramos aqui os casos de Bernadette - que seguiu
fielmente as demandas da Instituição, tornando-se freira – sendo constantemente
vigiada e nunca falando com o público - e Lúcia, vidente de Fátima, que se
tornou carmelita, vivendo reclusa. A partir do momento que o vidente deixa de
ser um instrumento vazio, ganhando autonomia e falando por si, a percepção da
veracidade de suas visões começa a se romper.
O processo de modelagem impedia
a autonomia do vidente - no ritual e em sua personalidade. As “novidades”
rituais não são bem recebidas porque demonstram a autonomia do vidente:
acrescentando elementos e conduzindo o Cenáculo – afastando-o do modelo. Assim,
os participantes começam a percebê-lo como arrogante, e não mais humilde – pois
ele não reproduz o padrão de aceitação, mas toma atitudes, circula, interpreta
mensagens; ou seja, torna-se um indivíduo, e não a reprodução de uma
personalidade padrão.
Além disso, Marcos, ao tentar
instituir a “novidade” em suas manifestações
–
em relação aos elementos simbólicos e rituais - acaba por romper abruptamente
com
“Pelo
meu filho Marcos e pelas obras que ele empreende em meu nome eu vos
|
as regras do jogo – em que a
adequação ao padrão era central - instituindo novas regras que não são
reconhecidas como autênticas pelos participantes. O “novo” não é percebido como
verídico. Perde-se, então, a impressão de verdade que havia sido constituída
durante a década de noventa através da adequação das aparições de Jacareí ao
padrão. Dessa forma, a reciprocidade entre o vidente e os participantes é
rompida.
A postura
de Marcos também contribui para esse processo de deslegitimaçao das
aparições. Além de professar constantemente sua exclusividade no contato com a
Virgem e não aceitar “palpites” de ninguém, ele também não atende o público –
os peregrinos devem enviar uma carta para marcar uma conversa, pois ele diz
estar sempre muito ocupado com as “tarefas que Nossa Senhora lhe atribui”. Além
disso, refere-se constantemente, durante suas falas no Cenáculo, à preferência
que Maria tem por ele, colocando-se como “um filho especial”.
Essas atitudes e falas do vidente
criaram uma antipatia da comunidade local
– inclusive dos católicos não
praticantes – em relação a sua figura. A seguinte fala, proferida por ele
durante um Cenáculo e atribuída à Virgem, é emblemática de sua
postura:
prometo
salvar o Brasil”. Por essa e por falas de teor
semelhante, Marcos confere valor e importância a si mesmo, por meio de
palavras atribuídas a Nossa Senhora, passando a ser percebido como “aparecido”,
“metido”, “arrogante” pelos católicos locais e pelos carismáticos.
Essas características
contribuem para a sua deslegitimação enquanto vidente, pois elas são o oposto
da humildade, da simplicidade esperada de um mensageiro de Nossa Senhora.
Assim, quando os fiéis se deparam com frases como a anterior, em que o vidente
faz questão de enfatizar a sua extraordinariedade, ou com o fato de não
falar pessoalmente com os peregrinos, a construção da humildade e da
simplicidade se desfaz, e eles se percebem diante de uma “celebridade”, que não
fala com o público e que se considera extraordinário. O vidente, ele próprio,
não permite a troca, considerando-se auto-suficiente.
Ou seja, a
troca é rompida. A crença no dom do vidente era atribuída pelos participantes,
que identificavam elementos que “provavam” a sua santidade. Entretanto, o
vidente rompe com as regras do jogo, afastando-se destes elementos. A convicção
na veracidade de suas visões é então quebrada.
Assim, as
posturas do vidente, o acréscimo de elementos estranhos ao padrão de aparições
marianas e a ruptura nas suas redes de relações sociais - afastando-o de
membros importantes da rede de
manifestações - levam à regressão dos Cenáculos, que são constituídos
atualmente apenas por um pequeno grupo de participantes fixos.
A participação de pessoas da
região é muito rara nos últimos anos, e as peregrinações de fora diminuíram
significativamente, devido a sua dificuldade em mobilizar a rede de contatos
sem a ajuda da RCC. Marcos, rompendo com os carismáticos, sendo combatido pelos
sacerdotes e pela comunidade local, está cada vez mais isolado, e os seus
rituais cada vez mais esvaziados.
Dessa maneira, na primeira
década das manifestações o apoio da RCC e a modelagem das aparições de acordo
com o padrão reconhecido foram centrais para o sucesso dos Cenáculos, já a
partir dos anos 2000 a intransigência de Marcos, que se proclama “o”
representante de Nossa Senhora, insinuando não precisar de mais ninguém, apenas
“Dela”, e o seu afastamento do modelo reconhecido colaboram para que suas
conexões se desfaçam e sua legitimidade seja questionada.
4.5) A defesa e o ataque de Marcos
Marcos não apenas insere novos
elementos nas suas aparições, mas também inicia um processo de combate aos
sacerdotes e ao bispo de São José dos Campos, realizado durante suas pregações
nos Cenáculos e nas mensagens atribuídas a Nossa Senhora. Isso acontece como
uma defesa do vidente após a rejeição de suas manifestações pelo clero local.
Em suas pregações durante os
Cenáculos ele fala da existência de um combate generalizado dos padres contra
as aparições, e, consequentemente, contra Nossa Senhora. Por isso ele avisa aos
participantes que o clero está corrompido, pois não quer que as pessoas “venham
ouvir as mensagens de nossa mãe celeste”. No entanto, segundo ele, apesar
dos sacerdotes desaconselharem a participação nos Cenáculos, Maria pede
enfaticamente que “seus filhos” compareçam e orem, que não ouçam os “maus
conselhos” dos padres.
O ataque ao clero em alguns
casos toma dimensões pessoais, e vem por meio de palavras atribuídas a Nossa
Senhora. Uma mensagem que teve muita repercussão na diocese foi transmitida no
Cenáculo de Novembro de 2005, em que, segundo o vidente, Maria diz que “o
bispo Dom Nelson é o filho que ela menos ama”. Vale a pena analisar com
mais cuidado este evento.
Ela foi proferida após o bispo
ter se manifestado contra as aparições – para o vidente Marcos, em consulta
particular, pois ele nunca as mencionou publicamente em
suas pregações63
– fato que ofendeu o vidente. Segundo Marcos, ele foi “escolhido por Nossa
Senhora”, ele é “o mensageiro de Maria”, assim, diante da rejeição do clero, do
rompimento com a RCC, a única fonte de legitimidade que lhe resta é o contato
com Maria, a crença em ser o único a receber as suas mensagens. Por isso Marcos
usa as mensagens para combater a rejeição do clero. Entretanto, as mensagens de
Maria não podem trazer elementos de discórdia, pois ela é a mãe carinhosa, que
ama a todos os seus filhos – como analisaremos no próximo capítulo, a
maternidade de Nossa Senhora é uma característica central das aparições – por
isso não pode deixar de amar Dom Nelson. Porém, tudo indica que pode amar
menos.
Marcos, em seu isolamento,
apoiando-se em Nossa Senhora, em suas palavras e mensagens, acaba por criar uma
escala de seu amor maternal, na qual ele é o mais amado dos filhos – por seguir
as determinações de Maria -, em seguida vem aqueles que participam dos
Cenáculos e também cumprem as determinações “dela”, e por último todas as
pessoas que não participam, e principalmente aqueles que a combatem, inclusive
o clero - os sacerdotes e o bispo, por não reconhecerem as aparições, e, pior,
tentarem convencer os católicos a não participar das aparições.
Dessa forma, a única moeda que
resta ao vidente é sua capacidade de falar com Maria. Ela, porém, não é
suficiente, pois a construção da verdade da crença depende de uma reciprocidade
de perspectivas, cuja troca ele rompe de maneira unilateral na forma como usa o
seu dom.
Os Bastidores de Jacarei Aparicoes - Tese de Doutorado e mestrado
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