A Retração das Aparições - Neste item analisaremos a segunda década das aparições, a partir de 2002, momento em que os Cenáculos entram em declínio, diminuindo significativamente o número de participantes. Consideramos que este esvaziamento ocorreu devido a dois fatores: o isolamento do vidente e o seu afastamento do modelo de aparições reconhecidas. Desde o início das manifestações ele não foi aceito pelo bispo da diocese, sendo posteriormente combatido por ele e, em seguida pelos sacerdotes locais. Entretanto, o seu isolamento ocorreu principalmente em relação à comunidade católica de Jacareí e das cidades próximas e a figuras importantes da RCC no Vale do Paraíba – que, na primeira década, constituíram a sua base de apoio.
Quando encerramos nosso trabalho de campo o vidente encontrava-se isolado, apoiado apenas por um pequeno grupo de participantes fixos, responsável pela organização dos Cenáculos, que a cada mês estava mais esvaziado. Neste momento quase não havia “novos” peregrinos, a grande maioria era de participantes fixos, vindos de outras localidades, mas que já conheciam a aparição e a freqüentavam com certa regularidade. Ou seja, a aparição estava estagnada devido à rejeição do vidente na comunidade religiosa local – clero e católicos da região –, e a sua ruptura com o movimento carismático. Analisamos esta teia de relações, que a princípio contribuiu para a legitimidade das manifestações, mas, que também se mostrou central para a estagnação posterior dos rituais.
A perda de apoio está relacionada à perda da autenticidade de suas visões, elas não são mais percebidas como verídicas pelos carismáticos e pela comunidade local; ou seja, eles não têm mais convicção na sacralidade dos fenômenos. Isso ocorre porque Marcos rompe com o padrão das aparições reconhecidas - no que se refere à simbologia e as características de sua personalidade. Ele insere novos elementos e realiza ações que, na percepção dos peregrinos, não condizem com uma aparição verídica e um vidente autêntico.
4.1) A ruptura com os carismáticos
A ruptura entre o vidente e os carismáticos da região ocorre no final do ano de 2001, exatamente uma década após o início dos fenômenos. Vários fatores contribuíram para isso. Marcos já possuía contatos e informações sobre aparições marianas, e começou a questionar o “domínio” dos carismáticos sobre os Cenáculos, argumentando que ele era o vidente, ele era “o escolhido de Nossa Senhora” e, portanto, ele deveria decidir o encaminhamento do ritual.
Paralelamente, os carismáticos o acusavam de “querer aparecer mais do que Nossa Senhora”. Esta frase foi proferida por duas carismáticas, de grupos distintos e em ocasiões diferentes, buscando demonstrar a arrogância do vidente, ou nos termos das informantes, a sua “vontade de aparecer”.
Assim, Marcos, ao tentar tomar a frente dos Cenáculos, inicia uma disputa com os carismáticos, que não concordam com a sua liderança. Ou seja, enquanto ele era uma criança e aceitava submissamente as ações e intervenções realizadas pelos carismáticos, a aparição foi intensamente apoiada, divulgada e promovida pelos membros do movimento. No entanto, quando o vidente começa a questionar estas ações, e especialmente ao buscar ser o centro, o foco dos rituais, passou a ser percebido como arrogante e perdeu seu apoio.
O vidente usa a sua exclusividade como moeda de valorização própria, pois
“ele sabia o que a Virgem queria, os outros não”. Como “escolhido de Maria”, afirma que ela lhe atribui tarefas, que somente podem ser realizadas por ele. A mais importante delas – e também a mais polêmica – é a sua exclusividade na interpretação das mensagens de Nossa Senhora. Essa atitude vinha em resposta à organização do livro “As aparições de Nossa Senhora em Jacareí” pelos carismáticos, no qual a sua participação foi mínima – os membros da RCC contaram a história e deram sua interpretação sobre os fenômenos.
O vidente, ao se proclamar como único intérprete legítimo das mensagens da Virgem em Jacareí – passa a organizar mensalmente um CD, com todas as mensagens transmitidas por Maria e com a sua interpretação delas – retira o poder da RCC em relação às “suas” aparições. Além disso, durante os Cenáculos, ele passa a ser o único a ter acesso à palavra. Ele conduz as orações, tem a visão e, por fim, interpreta a mensagem transmitida por Nossa Senhora.
Diante destas atitudes os carismáticos da região rompem definitivamente com Marcos, parando de freqüentar os Cenáculos e depondo contra ele em seus encontros. Importa destacar que o embate entre os carismáticos e o vidente acontece no momento em que os representantes locais da Igreja intensificam o combate às aparições, fato que também dificulta o apoio da RCC que, por ser um movimento católico, precisa, em certa medida, do aval da Igreja. Ou seja, o incentivo às aparições de Jacareí começava a trazer problemas para os carismáticos junto aos representantes do clero local, devido aos “exageros” do vidente.
4.2) A ruptura com a Igreja
A aceitação ou a rejeição das aparições pela ortodoxia católica é uma questão que perpassa a história desse tipo de evento. O caminho percorrido para o reconhecimento de uma manifestação de Nossa Senhora pela ortodoxia é bastante longo, entre uma pessoa dizer ter visto e escutado Maria e a aceitação deste fato pela Igreja há um grande caminho a ser percorrido, que, na maioria dos casos, culmina com a sua rejeição ou mesmo com a interdição pelos representantes oficiais do catolicismo.
O número de aparições de Nossa Senhora não aceitos pela Igreja é imensamente maior do que os reconhecidos oficialmente, e mesmo que os apenas “tolerados”. Jacareí é mais um exemplo de rejeição. Atualmente a aparição é completamente rejeitada pelos representantes locais da Igreja Católica, mais especificamente pelo bispo de São José dos Campos, responsável pela paróquia em que ocorre a manifestação.
Várias etapas se sucederam até a rejeição: a principio o bispo apenas “não recomendava” a participação dos padres, mas, devido à intensificação da polêmica em torno das atitudes do vidente, o bispo acabou proibindo a presença de sacerdotes no Cenáculo. O pároco de Jacareí acatou sua recomendação e foi ainda mais agressivo, proibindo a participação dos paroquianos, sendo que aqueles que desobedecessem à sua determinação não receberiam a comunhão durante as missas.
Esse é o momento de auge dos debates, que não arrefeceram até o final de meu trabalho de campo, em 2007. É preciso destacar que a proibição estabelecida pelo bispo surtiu efeito sobre o Cenáculo, contribuindo muito para a diminuição do número de participantes nos rituais. Assim, embora não tenha conseguido extinguir o ritual, diminuiu significativamente o número de participantes. Especialmente na diocese de São José dos Campos, a qual pertence Jacareí, a retaliação a essa aparição funcionou, pois atualmente os participantes dos Cenáculos não são provenientes da cidade ou da diocese, mas sim de outras localidades: são os peregrinos analisados no primeiro capítulo.
Segundo a postura determinada pelo Vaticano, uma aparição, para ser rejeitada, deve estar em contradição com elementos da teologia católica. Assim, a postura dos sacerdotes locais está fundamentada nas contradições entre o que é estabelecido pela ortodoxia católica na análise deste tipo de manifestação e a aparição de Jacareí. No capítulo anterior demonstramos que os critérios estabelecidos pelo Vaticano são utilizados de acordo com o interesse dos atores e grupos envolvidos nos eventos. A inserção de “novos” elementos e a postura do vidente contribuem para que a hierarquia percebesse desvios nesta manifestação que a caracterizavam como “falsa” e, portanto, ilegítima.
4.3) Os “exageros” do vidente e o combate do clero
As visões de Marcos Tadeu, com o passar do tempo, foram apresentando elementos considerados inconsistentes, sem conexão com a doutrina católica ou com as aparições reconhecidas de Nossa Senhora. Esses elementos surgiram por volta de 1998, no auge das manifestações. Neste período, Marcos, já um garoto de 20 anos, diz receber também a visita de Jesus e de São José, e até mesmo do Arcanjo Gabriel. Todos transmitem mensagens e “confirmam” as falas de Nossa Senhora. Embora a figura central das aparições ainda seja Maria, outros santos também começam a aparecer e a falar com Marcos, o que desestrutura o padrão consolidado das aparições: a Virgem não aparece mais sozinha durante os Cenáculos, mas acompanhada de Jesus e de São José.
A inserção destes elementos faz crescer a desconfiança da comunidade e do clero local – que já não via com bons olhos os encontros no Monte. A Igreja inicia, então, um combate contra as manifestações. O principal argumento utilizado por ela é a “inconsistência” das visões de Marcos Tadeu. A diocese e algumas paróquias da região se encarregaram de montar cursos e palestras sobre Nossa Senhora e sobre suas aparições, para “esclarecer” os paroquianos sobre esse tipo de fenômeno. Exemplo disso foi um curso realizado na paróquia do Espírito Santo, em São José dos Campos, na quaresma de 1999. Durante três noites foram realizadas palestras sobre Nossa Senhora, dedicadas aos dogmas marianos – enfatizando o que era aceito ou não pela Igreja – e a última delas foi referente às aparições de Nossa Senhora. Nela o palestrante mencionou a cautela e a prudência recomendadas pelo Vaticano, bem como os critérios de avaliação, enfatizando a importância da adequação à doutrina católica e terminou demonstrando as características comuns entre os fenômenos reconhecidos.
Em apenas um momento as aparições de Jacareí foram mencionadas, justamente para lembrar a importância da prudência, recomendada para cada um dos participantes, e da adequação à doutrina. Para a grande maioria dos participantes do curso, que já conhecia as manifestações de Jacareí, ficou evidente no momento em que o palestrante começou a demonstrar as semelhanças entre as aparições de Nossa Senhora, as diferenças em relação às visões de Marcos.
Importa destacar que esta paróquia é um importante centro de referência para os carismáticos locais, sendo que o Pároco é um destacado membro da RCC na cidade e na região, sendo suas missas repletas de carismáticos de toda a cidade e mesmo de cidades vizinhas. Assim, o público das palestras foi constituído, em grande parte, por membros e lideranças da RCC na região. Ao final das palestras ficou clara a intenção dos organizadores – o bispo e o pároco – em alertar os paroquianos a respeito das aparições de Nossa Senhora, especialmente sobre as manifestações de Jacareí, que atraíam multidões devido, em grande parte, ao empenho de membros da RCC. O pároco de Jacareí teve uma postura mais explicita contra as aparições. Enquanto os paroquianos de São José dos Campos estavam sendo formados para o “discernimento”, ou seja, para que pudessem avaliar as aparições – embora com uma forte tendência a renegá-las – os fiéis de Jacareí foram proibidos de freqüentá-las, sendo ameaçados inclusive com a
excomunhão. O pároco de Jacareí foi enfático quanto às “aberrações” das visões de Marcos, especialmente no que se refere às aparições de Santos – principalmente São José – fato que não está presente nas aparições reconhecidas.
O pároco de Jacareí usava argumentos que demonstravam a incompatibilidade entre as aparições de Marcos, a doutrina católica e as aparições reconhecidas, especialmente no que se refere aos “novos” elementos, como as visões de Santos e Anjos. Em suas palavras “isso nunca aconteceu antes, Maria aparecer tantas vezes, e ainda mais junto com Jesus e São José! Em Lourdes não foi assim, nem em Fátima. Tudo naquela aparição (a de Jacareí) demonstra a sua falsidade”.
Dessa forma, os elementos heterodoxos com relação às aparições reconhecidas eram usados para deslegitimar a aparição de Jacareí. Se em um primeiro momento houve a modelagem do fenômeno de acordo com o padrão estabelecido no século XIX para lhe atribuir legitimidade, nesta segunda década são justamente os elementos que demonstram o afastamento com relação ao padrão que são enfatizados pelos sacerdotes para demonstrar a sua falsidade. Isso foi realizado em São José dos Campos, por meio das palestras, e em Jacareí, pelas pregações do pároco62.
A inserção de novos elementos é percebida como heresia. Marcos quebra as regras do jogo, acrescentando elementos que não estavam presentes nas aparições reconhecidas. A sua ruptura com as aparições estabelecidas foi além do que era aceitável, demonstrando uma autonomia que impossibilitava a aceitação de suas visões como legítimas. Sua postura também contribui para o declínio das manifestações. As atitudes e falas de Marcos o afastaram do ideal de humildade e inocência constituintes dos videntes marianos, caracterizando-o, pelo contrário, como arrogante, adjetivo percebido na fala dos carismáticos e dos católicos locais em referência a ele.
Lilian Maria
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